Uma conversa com o diretor de fotografia goiano Larry Machado sobre o filme Vento Seco, uma exploração da sexualidade, obsessão e vida no Brasil rural – entrevista por James Cunningham, traduzida como cortesia da Australian Cinematographer Magazine.
Recentemente indicado à Melhor Longa-Metragem no Festival Internacional de Cinema de Berlim, a fantasia sexual invade a realidade sexual no divertido, explícito e belíssimo Vento Seco, de Daniel Nolasco, com fotografia do visionário brasileiro Larry Machado.
Como você se envolveu com Vento Seco e qual era a visão original do filme antes de iniciar a pré-produção?
Eu posso dizer que o processo do Vento Seco começou em 2016, quando conheci o Daniel e filmamos o curta Netuno, que é na verdade uma versão “reduzida” do Vento Seco, e, de certo ponto, um pouco conservadora, porém foi uma ótima experiência para começarmos a trabalhar juntos e para começar a entender como era filmar na cidade de Catalão, cidade natal do Daniel.
De lá pra cá, fizemos um outro curta e mais 2 longas-metragens documentais, um deles o Mr Leather, que é um documentário sobre a cena fetichista leather de São Paulo, foi uma experiência importante com a estética e com as pessoas dentro da comunidade Leather e BDSM. Então, para mim, Vento Seco foi parte dessa caminhada que fizemos nesses filmes anteriores, era como se eu já tivesse feito aquilo. Para mim era um filme de contemplação ao fetiche, extravagante, e também melancólico, com situações de vivência simples sobre morar naquela cidade, sobre amizade, morte e amor.
Como diretor de fotografia, como foi sua colaboração com a diretora de arte Carol Breviglieri durante a pré-produção do filme?
Eu conheço a Carol há muito tempo, com quem eu fiz muitos dos meus primeiros filmes, então foi muito tranquilo e fluida a nossa relação.
Trabalhávamos muito com moodboards que compartilhávamos entre nós frequentemente, com a participação do Daniel e também do Dan Lemos da equipe de arte. Então, muito dessa estética do neon foi construída nessas pesquisas de imagens, e como pensar o neon como iluminação e como objetos cenográficos. Fizemos um bom estoque de fitas e mangueiras leds RGB de todo tipo, que usamos na fábrica, nos carros, na boate, no vestiário, etc.
Ela também me deixava sempre a par dos figurinos, que é um fator fundamental na estética do filme, era sempre muito colorido e com diversas formas de reflexão, com varias peças em couro e também em látex, o que criava brilhos muito interessantes. O figurino também foi importante para a escolha de algumas paletas de cores.
A cor é uma parte tão importante do filme. Você pode falar sobre o uso liberal de cores e a paleta de cores que escolheram para o filme?
Muito da proposta do uso da cor no filme seria para ser um contraponto a figura do Sandro, todo o aparato cinematográfico, os movimentos de câmera, o zoom, a iluminação e cores seriam uma forma de expressão do que poderia haver dentro do personagem, o que ele “via”, mas que não expressava em seu corpo.
Então assumimos muito a iluminação do filme de forma cénica, teatral e bastante influenciados pelo filme Querelle, de Fassbinder, o que nos deu uma liberdade muito grande na criação com as cores. Tudo era possivel colorir, qualquer efeito de luz poderia ser uma boa ideia para quase todas as cenas. Houve muito planejamento, mas algumas decisões em relação à cor e à iluminação surgiram durante as gravações: a luz vermelha que pulsa no carro do Ricardo quando Sandro hesita em riscá-lo, o rosa presente em diversas cenas em que Maycon aparece, por conta da cor de sua sunga na cena de apresentação do personagem, entre outros.
A própria Catalão trouxe muitas ideias de iluminação, as lojas do centro da cidade eram cobertas por fitas leds RGB, algumas praças eram iluminadas com verde, as ruas e a fábrica de fertilizante tinham muito verde e ciano de lâmpadas de vapor metálico e de mercúrio, e isso nos influenciou muito em nossas escolhas.
A cor também era uma forma de destacar as cenas oníricas do filme, como a cena de noite americana com o golden shower, quando ele entra no lago com o cachorro, a cena do policial e a lua de sangue quando Sandro encontra Ricardo e Maicon juntos, são cenas de cores quase únicas em comparação ao restante do filme, violeta, azul, amarelo e vermelho.
Quais fatores você levou em consideração ao escolher sua câmera e lentes. Com que câmera e lentes você filmou Vento Seco e por quê?
Goiás é um estado no qual o cinema e o audiovisual vêm crescendo muito nos últimos 10 anos, mas ainda não temos grandes locadoras com muitas opções de equipamentos e com preços mais acessíveis como em outros estados. Além disso, as políticas de fomento ao cinema no Brasil estão muito inconstantes, principalmente agora com o governo Bolsonaro. Então estamos sempre pensando formas de produzir e comercializar nossos filmes de modo totalmente independente e poder fazer isso na melhor qualidade possível. Assim, nós adquirimos uma Red Scarlet Dragon em 2018, que é uma câmera robusta, com uma textura que me agrada muito e com um bom dinamic range, e, na minha opinião, é uma câmera bem versátil e segura o tranco por mais um bons anos.
As lentes, usamos duas Angenieux 16-40mm e 45-120 Optimo, que são lentes excelentes e nos dariam o alcance de zoom que precisávamos, usamos a 45-120 na maioria das cenas e também uma Angenieux 24-290 optimo, apenas para a cena de apresentação de Maicon, em que precisávamos de uma distância maior.
Você pode falar brevemente sobre sua própria equipe no departamento de câmeras? Você já havia trabalhado com algum deles antes e como era sua relação de trabalho com eles? Você mesmo operou a câmera?
O Kaco Olimpio foi nosso 1º assistente de câmera, nos conhecemos na faculdade e trabalhei com ele em várias funções diferentes, já fui seu segundo assistente de câmera em vários projetos. O Tothi Cardoso é um grande amigo e meu sócio e foi o 2º assistente de câmera e também trabalha com o Kaco há um tempo. Chico Macedo foi nosso chefe de maquinária e Elinaldo Revis foi nosso gaffer, os dois são uma dupla muito importante para o cinema de Goiás, com uma experiência e um profissionalismo incríveis, juntos eles formaram grande parte dos profissionais da nossa região. Os assistentes de elétrica foram Rosa Caldeira e Janaina e o assistente de maquinária, Jarves Calixto. Sim, também operei câmera.
Eu realmente amei o seu uso das “luzes de neon” ao longo do filme. Percebi que você o usou em vários locais, bem como em vários veículos. Você pode falar um pouco sobre sua decisão de usá-lo e, geralmente, sobre sua abordagem de iluminação no filme?
Acho que o uso do “neon” ou do tubo é ou foi uma “moda” global, e a gente queria inventar moda. E esse artificio acabou sendo uma facilidade que encontrei para dar toda a cor que queríamos para o Vento Seco. Acredito que muitos videoclipes do pop e do funk brasileiros me influenciaram nisso também, como os clipes da Gloria Groove, Pablo Vittar, Kevin o Cris, entre outros muitos. Então, passei a pensar que seria interessante para o filme usá-los como luzes práticas, para funcionar como um elemento que também datasse o filme nessa época e fosse também uma referência a esses videoclipes, que acho muito significativos pra gente.
Como disse anteriormente, estávamos com a cabeça muito em Querelle, e também nessa condição de que deveríamos ser extravagantes no mesmo nível que Sandro era contido, então os tubos leds foram uma forma de trazer a cor e estética que queríamos de uma forma atual.
Além do que tinha mencionado sobre a iluminação led da cidade, existe a cultura do som automotivo muito forte, em que os carros são cobertos de fitas led, até a lancha que usamos também era coberta com elas, além de ser uma cultura bem hetero, que foi mais um motivo para mexermos com esses signos.
Nós usamos um kit de 4 tubos de 60cm Andromeda CameTV, que responderam muito mais do que eu esperava, eram muito práticos e usamos eles em praticamente todas as cenas do filme.
Gostaria de saber se você teve alguma referência específica a filmes em Vento Seco? Há uma cena do personagem principal com fogos de artifício explodindo ao fundo, o que me lembra uma cena semelhante de Heath Ledger em Brokeback Mountain, com fogos de artifício explodindo ao fundo. Isso foi uma homenagem? E que outras referências fílmicas você usou?
O Vento Seco tem várias homenagens a diversos filmes, símbolos e personagens queer, referências muito diretas e em alguns momentos são reproduções de cenas desses filmes, como a que Sandro entra no lago com o cachorro em referência a Boys in the sand, de Wakefield Poole, a cena de Sandro com a moto de Maycon, uma referência a Scorpio Rising, de Kenneth Anger, também essa do Brokeback Mountain, entre outras.
Para a fotografia as maiores referências são Scorpio Rising, Bijou e Querelle. O Scorpio é um filme realmente muito bonito, pra gente que só filmamos em digital, a textura que o filme tem é algo que sempre me impressiona, a forma que ele ilumina, com brilhos intensos nada naturalistas com fontes não justificadas, além disso, o filme possui um glow e algumas distorções de lente bem interessantes, assim como em Bijou e em Querelle também. Esse efeito glow foi bastante trabalhado no Vento Seco. Bijou também me influenciou na forma de iluminar, o uso das cores, o glow, o flares star, assim como o comportamento da câmera e seu uso de zoom, me parece que é uma câmera bastante viva, com uma certa imprecisão e improviso que gosto muito.
Eu gostaria de ter aproximado mais dessa estética dos anos 1960 até 1980 e testado alguns filtros de lente, mas não foi possível, usamos um blackpromist ¼ na maioria das cenas e adicionamos mais glow e flares na pós-produção.
Eu adoraria perguntar a você sobre como filmar a sequência do passeio do parque de diversões. Como surgiu essa sequência, qual foi o planejamento por trás dela e como você a filmou?
Essa cena foi uma das que mais me preocupava, era uma cena muito longa e com detalhes que aconteciam durante a cena, tudo isso girando, mas eu sabia que podia contar com o Chico Macedo e Jarves Calixto. Nós fizemos uma visita ao Kamikazi algumas semanas antes, que foi suficiente para o Chico fazer seu projeto de traquitana. Ele montou uma estrutura com tubos, algemas e varetas e colocou a câmera do lado de fora do brinquedo, ficou uma estrutura extremamente segura e não precisamos optar por alguma câmera mais compacta. Para iluminar, usamos novamente os led tubes e 2 Hmi’s 1200w com gelatinas ciano.
Acredito que para o Leandro (Sandro) foi muito mais difícil, foi realmente muito difícil ficar concentrado girando daquela forma.
Houve alguma consideração adicional para filmar as cenas mais sexualmente explícitas do filme? Como as cenas de banho de nudez foram filmadas, havia uma equipe mais limitada, como as cenas de sexo foram planejadas e bloqueadas? Como foi filmar para você atrás das câmeras e para os atores na frente das câmeras?
Para filmar as cenas de nudez não teve nada muito especial que não aconteça em qualquer filme. É uma coisa que variávamos de acordo com a cenas. As cenas de nudez no banheiro foram super tranquilas, não foi preciso diminuir a equipe, era um ambiente bem descontraído. Nas cenas de sexo era preciso mais concentração, silêncio, tentávamos filmar continuamente sem cortar durante alguns minutos e íamos posicionando a câmera o quanto era preciso, em algumas cenas foi preciso mais ajustes e algumas ações mais ensaiadas durante o sexo, que demandou uma concentração e paciência grande por parte dos atores, que foram extremamente de profissionais.
Na pecuária envelopamos as locações com algumas lonas pretas e gravamos num horário mais cedo para não termos problemas com curiosos e funcionários da pecuária. Na cena do bar Leather, em que o cowboy (João Sá) ejacula em outro homem (Marcelo D’Avilla) com uma máscara de cachorro, estávamos com toda a equipe, a cena tinha um certo “time” que deveria acontecer do movimento de câmera, zoom, etc. O João é ator pornô e faz performances em algumas boates, ele tem um controle corporal incrível, e para essa cena combinamos que se todo movimento estivesse correto, a Larissa (assistente de direção) dava um sinal para ele e pouco tempo depois ele atingia o orgasmo, fizemos em um take.
Como você se envolveu no processo de pós-produção? Sua filmagem foi avaliada e, em caso afirmativo, quem fez a avaliação? Como você se envolveu neste processo?
A colorização foi feita pelo Dodô (Adonias Dantas) no estúdio da O2 Pós. Para o processo de pós-produção, eu fiz alguns testes de câmera em algumas locações do filme na pré-produção e testamos alguns looks, principalmente nas cenas de “noite americana” e “lua de sangue”, mas nada muito aprofundado e sem criação de algum Lut previamente.
O color grading foi feito durante duas semanas, em que eu e Daniel acompanhamos todo o processo, e pra mim foi muito surpreendente o trabalho de cor do Dodô, que entendeu muito bem quando falamos que queríamos o filme com cores extremamente vibrantes, alto contraste e aberto a possíveis estilizações com glow, flares e o que fosse preciso.
Você tem uma cena ou sequência favorita em Vento Seco? Por quê?
Eu gosto muito da sequência do bar Al Parker, porque eu acho que é um pouco da síntese e o ápice de todo fetiche e energia que o filme traz, eu gosto como ela começa, gosto do silêncio que permanece durante toda a sequência e a gradação de acontecimentos. Gosto também porque é uma cena com muitos códigos fetichistas colocados em pequenos detalhes e também pelo orgasmo final do Sá João que é realmente muito bonito.
Outra cena que gosto, e é o oposto da cena do bar leather, é a cena da conversa entre Sandro e Laby nas margens do lago durante o crepusculo, é uma cena muito simples e de uma crueza que nos coloca os pés no chão, e faz a gente entender muita coisa mesmo que não seja dita em palavras, me faz lembrar também da fala da Paula depois da morte de César.
Olhando para trás, para o que você (diretor / produtores) planejou originalmente para fazer Vento Seco, você acha que teve sucesso? Olhando para trás, o que você poderia ter feito de maneira diferente?
Acredito que não, muitas coisas mudaram ao longo do caminho, por gosto ou não, mas que levaram a um filme que nos orgulhamos muito.
Ficha técnica:
Diretor: Daniel Nolasco
Roteirista : Daniel Nolasco
Produtora: Lidiana Reis
Diretor de Fotografia: Larry Machado
Direção de Arte e Figurino: Carol Breviglieri
Editor: Will Domingos
Som: Guilhotina Guinle, Guilherme Farkas, Jesse Marmo
Caracterização: Ana Simiema
Elenco:
Leandro Faria Lelo, Renata Carvalho, Allan Jacinto Santana, Rafael Teophilo, Leo Moreira Sá, Marcelo D’Avila, Mel Gonçalves, Conrado Helt, Guilhotina Guinle, Wilker Rodrigues, Larissa Sisterolli, Tothi Cardoso, Bruno Battaglia
Link para publicação original: https://acmag.com.au/2021/09/01/dry-wind