Monica Palazzo, ABC e Fernanda Frate: “O Mestre da Fumaça”

Diretoras de arte falam sobre o trabalho no filme
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Por Danielle de Noronha

O Mestre da Fumaça é um filme de ação escrito, produzido e dirigido pela dupla de diretores estreantes André Sigwalt e Augusto Soares. André, que é sócio da ABC como diretor de fotografia, também assina a fotografia. O filme é uma produção independente e traz uma mistura de gêneros, com ênfase no kung fu, em especial inspirado no cinema de Hong Kong dos anos 1960 e 1970, e, ao mesmo tempo, nas comédias stoner, em diálogo com os filmes da contracultura dos anos 1970 a 1990.

O ator brasileiro Daniel Rocha e o ator chinês Tony Lee protagonizam a ação, que narra a jornada de dois irmãos – Daniel (Thiago Stechinni) e Gabriel (Daniel Rocha) – amaldiçoados pela máfia chinesa com a temida “Vingança das 3 Gerações”. A única maneira de sobreviver é aprender os segredos do Estilo da Fumaça, uma arte marcial ensinada por um mestre singular.

Para o filme, foi criada uma arte marcial inédita,o Estilo da Fumaça, baseada na cannabis e em estilos de lutas chinesas que existem há centenas de anos, como o Bagua Zhang, o Xing Yi Quan e o Baji Quan. O Estilo da Fumaça possui oito conjuntos de movimentos específicos e é totalmente aplicável na vida real. O elenco foi especialmente preparado para atuar e lutar em cena utilizando esse estilo.

Para saber mais sobre a construção desse universo, conversamos com as diretoras de arte Monica Palazzo, ABC e Fernanda Frate sobre o trabalho no filme.

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Equipe e elenco na pré-estreia de “O Mestre da Fumaça” em São Paulo. Foto: Bruno Poletti

Um filme brasileiro que tem como temáticas principais o kung fu e a maconha, algo bastante único, numa mistura de gêneros como comédia, ação, paródia… Gostaria de iniciar perguntando quais foram os primeiros pensamentos que tiveram a ter contato com o tema e, posteriormente, com o roteiro do filme?

Monica Palazzo: André e eu trabalhamos juntos algumas vezes nos anos 2010, e ele sabia que eu pratico kung fu e sou próxima ao tema da maconha. Ele me convidou para um café no 2º semestre de 2018, estávamos entre os turnos da eleição presidencial, e falar sobre maconha tinha um motivo político ainda mais forte caso acontecesse o que aconteceu… Bem, no papo falamos sobre a vida, cinema, passado, futuro e então ele me contou a história. De antemão, eu achei a ideia genial! O André me mostrou fotos da locação na Bocaina e falou sobre o desenho da produção como um todo, que o filme era independente e que dependia de uma força-tarefa para ser feito. Eu topei na hora! Só precisávamos alinhar o cronograma, mas as filmagens estavam previstas para o 1º semestre do ano seguinte, 2019. 

Eu gostei do roteiro, estava muito bem estruturado. Acho que li umas duas versões, mas não me lembro de mudanças drásticas. O André sempre ficou por perto, meu contato foi mais intenso com ele, mas o Augusto sempre se mostrou aberto às ideias. Os dois sabiam o tamanho do filme que tinham nas mãos – tanto o tamanho do filme em sua potência e possibilidades quanto ao tamanho do orçamento. A troca com ambos foi sempre muito boa.

Fernanda Frate:  Ao entrar em contato com as primeiras ideias do roteiro, principalmente por meio do André e da Monica, me senti bastante empolgada. Em nossas conversas me lembro de comentarmos que nossa indústria cinematográfica carece ser vista como uma arte segmentada em gêneros, sendo ainda muito interpretada como a massa disforme de “cinema brasileiro”. “O mestre da fumaça” é um filme de gênero bem delimitado ao meu entendimento. O gênero de filmes de Kung-fu engloba a comédia e a ação, principalmente diante das referências de Bruce Lee e Jackie Chan como o André e o Augusto souberam deixar bem expresso no roteiro. Fora que abordar o tema da maconha tornou tudo ainda mais arrojado e animador.

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Li que os diretores realizaram cineclubes semanais com filmes de kung fu, em especial chineses, para criarem o roteiro. Vocês chegaram a participar de alguma dessas sessões? Quais referências e inspirações dialogaram para construir a arte desse filme?

MP: Não participei dos cineclubes, acho que eles fizeram mais mesmo no processo da escrita do roteiro, quando entrei, o roteiro estava pronto, num tratamento muito próximo do filmado, pelo que me lembro. Mas assisti alguns títulos, salvo engano eles tinham os filmes digitalizados ou foi fácil de encontrar. O que mais me marcou foi o longa do Jackie Chan “Drunken Master”, traduzido como “O mestre invencível”, cuja estrutura narrativa e temática se aproximou muito de “O mestre da fumaça”. Mas no longa do Chan, ele usa o estilo de kung fu bêbado, que existe, e, no caso do nosso, o André inventou uma sequência de movimentos, o estilo da fumaça. Usei muitos frames desse longa como referência para criação do universo do mestre – tanto internas quanto externas.

FF: Infelizmente também não participei dessas sessões, entrei no filme um pouco mais tarde. Mas as referências de arte vieram principalmente da pesquisa da Monica, baseada em cores primárias, com paletas tiradas de filmes do gênero.

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Referências para a cenografia da casa do mestre
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Referências para a praça da cidade onde vive o mestre

Como foi codirigir a arte neste trabalho?

MP: O nome da Fernanda Frate veio na primeira conversa com o André, desde o início do processo. Nós dois já tínhamos trabalhado com ela, e sabíamos que seria uma excelente parceira de trabalho, se topasse. No início, ia ser minha assistente em todo o processo, mas com o cronograma fechado, convidei-a para assinar a arte comigo, uma vez que ela ficaria responsável pelos sets. Sou muito grata e lisonjeada por termos feito essa parceria, a Fernanda também trouxe pessoas muito ponto-firmes para a equipe de arte tanto na pré quanto na filmagem. Nossa produtora de objetos, a Akemi Shimada, foi fundamental para o processo, ela é do tipo de profissional que entrega muito mais do que imaginava, com criatividade, talento e doçura.  É o 4º trabalho no qual divido a DA com outro(a) profissional, e tem projetos que tem essa característica, ou que pedem esse tipo de parceria.

FF: O orçamento do departamento de arte desse filme era extremamente baixo, fazendo com que nós tivéssemos que nos adaptar muito ao que as locações ofereciam, adicionando elementos pontuais. Foi uma experiência incrível codirigir com a Mônica porque admiro muito seu trabalho, sempre me ensinando muito a cada nova empreitada juntas. Nossa divisão para a realização desse filme foi basicamente a Monica como diretora de arte e eu como diretora de arte no set. Então minha parte foi fazer com que os cenários se aproximassem ao máximo com o que a Monica concebeu, sempre reutilizando muitas coisas e tentando nos adaptar ao orçamento.

Poderiam comentar um pouco mais sobre como foram os diálogos com os diretores e especificamente com o André na fotografia na pré e também durante as filmagens?

MP: A gente fez todo o processo que geralmente se faz: pesquisa, reunião de AT, formação de equipe, visitou todas as locações, criou lista de intervenções, de objetos, de artes gráficas, etc. Eu tive até a colaboração de uma pesquisadora de imagens profissional, a Roberta Vaz, que ajudou a alimentar a minha pasta de referências com frames de filmes e séries. E tivemos muita colaboração da equipe como um todo, para produzirmos alguns objetos específicos. Esse tipo de projeto depende dessa corresponsabilidade entre os departamentos.

Eu me lembro de algo que o André disse, ou que eu concluí durante nossas trocas, que as cores da paleta de cor material – cuja responsabilidade e sugestão vem da direção de arte e do figurino – iam ditar o look do filme com um todo. Ou seja, a materialidade do mundo visível – figura e fundo – seria a base para a cor do filme. Então, a arte se apropriou das cores existentes nas locações, e pontuou com outros tons vindos de adereços, objetos, elementos da cenografia e sobretudo os figurinos incríveis da Lolô Aranha. A gente pintou apenas a parede de um set, do vilão, o que é meio raro em um projeto como esse, geralmente pintar paredes é algo meio básico. O look final da imagem, e aí vem a intervenção do Borghi, potencializou a cor dos elementos materiais do set de maneira fundamental e muito criativa, por exemplo, o filme vai “adouradando” ao longo da relação do aprendiz com o mestre.

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Por se tratar de um filme de baixo orçamento, mas que se passa em diferentes cidades e locações e tem toda uma temática chinesa/oriental por trás, quais foram os desafios e as soluções que encontraram para o departamento de arte ajudar a contar essa história?

MP: Como diretora de arte, eu gosto de criar “historietas” pregressas que me ajudam a fabular e criar os universos visuais  dos filmes. Então, eu precisava de alguma forma “resolver” o universo do mestre – uma casa colonial como locação numa pequena cidade na Serra da Bocaina. O André deu uma ideia, disse, “imagina que seja em Macau”, uma China onde as pessoas falam português, que teve colonização portuguesa… claro que não é Macau, mas esse conceito me estimulou a criar o universo do mestre com uma base conceitual de fundo. Todo o universo gráfico do universo do mestre foi escrito em mandarim, a Akemi fez o meio de campo com um senhor que ela conheceu que escreveu para nós cartazes a mão, e o Tony Lee, ator que fez o mestre, também colaborou.

FF: A solução foi a reutilização máxima dos materiais. Lembro de comprar três galões de tinta: um azul, um amarelo e um vermelho. E que a partir deles eu faria todas as cores de coisas pintadas no filme. Comprei algodão cru que foi tingido de várias cores também, sendo reutilizado desde toalha de mesa a lençol.  Os adereços de maconha foram todos feitos pela equipe de arte, não tínhamos aderecista então nos revezamos para atender as demandas de escultura, pintura e construção dos props. Todo mundo fazia basicamente todas as funções, desde bolar os baseados até bater as listas de arte.

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Ainda em diálogo com esse tema, o filme foge dos estereótipos mais utilizados em relação à maconha e às pessoas que a fumam, possibilitando outras imagens e representações. Como pensaram esse universo para o filme?

FF: A maconha é o lúdico,  então era sempre a parte mais divertida de ser trabalhada. Foram muitos adereços de maconha, os buds,  os baseados ornamentais, gigantes até. Por isso era a parte na qual o André,  Augusto, Armando e todo mundo da equipe se juntavam para encontrar a solução. Esse filme foi muito uma construção coletiva, com um clima muito divertido no set.

MP: Existem muitos tabus e má informação sobre a maconha, e faz menos de 10 anos que essa erva tem ganhado mais espaço, sobretudo em seu uso medicinal, que é muito grande. Mas meu pai me contava, quando eu e meu irmão éramos adolescentes, sobre os “cigarros índio” que eram vendidos em farmácia, no interior do estado de São Paulo, para bronquite, asma e insônia. Isso deve ser décadas de 1940 ou 1950. E, adivinha, eram cigarros de maconha!

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Houve muito retrocesso por causa de sua criminalização, mesmo porque era uma erva usada por pessoas escravizadas séculos atrás e então começa por aí. E há inúmeros estudos na área da medicina, das ciências sociais, e deve ter econômicos também, mostrando que descriminalizar e regulamentar traz benefícios, e, além da flor, tem outras espécies que dão o cânhamo, uma fibra muito poderosa. Fora que é uma planta pura – fuma-se a flor, não passa por processos químicos, o único processo são fertilizantes que, hoje em dia, têm inúmeros nacionais, além das formas mais naturais de se cultivar também, com compostagens próprias. 

Portanto, trazer o assunto à tona, misturando o kung fu, uma arte marcial milenar, que envolve presença, dedicação e disciplina, com o uso da planta criou essa potência que é um estilo próprio, em um filme que mescla referências mais conhecidas com outras menos. Isso é de uma genialidade absurda, a meu ver. E, sim, cria-se outras imagens e representações. 

Contem-nos um pouco mais sobre esse trabalho das equipes de figurino, objetos e caracterização. Quem foram as profissionais e quais os principais conceitos?

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FF: Posso falar da equipe de objetos, que acompanhei mais. Os objetos foram produzidos em sua maioria pela Akemi Shimada, que fazia mágica para conseguir as coisas. Conseguiu muitas coisas emprestadas, muitos favores, inclusive para as escrituras em chinês, já que nenhum de nós sabia traduzir nada daquilo. Ela ia na loja do senhor chinês que manjava, pegava umas coisas e já conseguia uma tradução,  ou uma elaboração de cartaz. As artes gráficas foram feitas pelo Victor Fernandes com a orientação da Monica. A maquiagem foi feita pela Gi, que estava praticamente sozinha e soube muito bem lidar com a pressão. E o figurino da Lo Aranha deixou a Monica e eu muito felizes,  já que também tinha pouquíssima verba para ser realizado.

MP: Sim! O André e o Augusto convidaram cada chefe de equipe, e elas – Lolô Aranha e Jess Monge – figurinista e maquiadora – fizeram um trabalho incrível. Fizemos um encontro no qual trocamos referências, falamos sobre paleta de cor e estilo de cada personagem, mas tem muito dos meninos nessas definições, por exemplo, o casaco amarelo de um dos irmãos é um clássico em filmes de kung fu (vale lembrar de imagens de Bruce Lee e Uma Thurman), já o figurino do Gabriel quando ele vai atrás do Mestre é referência de Rocky Balboa. Outro ponto que eu acho muito bem realizado no longa é a relação entre luta/golpe e consequência no corpo das personagens, e como essa correlação e continuidade estão impecáveis, ou seja, a marca da bota na blusa depois do chute, o despenteado e a vermelhidão depois do soco, e por aí vai.

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O filme fez uma boa trajetória nos festivais e também nas salas de cinema. Para vocês, além da inovação do tema, o que tem levado essa identificação com o público? Como você se sentem com o resultado final do filme?

MP: acho que o filme tem esse algo de inusitado, além de flertar com a estrutura narrativa de filmes de kung fu  e dos “stoner movies”, um gênero pouco ou nada explorado na cinematografia brasileira, mas que existe toda uma cultura fora do Brasil, tanto é que tem até festivais especializados nessa estética. Além do que a visualidade como um todo e as coreografias das lutas estão muito sofisticadas. Não à toa ganhou o prêmio de público na Mostra de Cinema de São Paulo no ano passado (2022).

FF: O resultado final me deixou bastante feliz. É um filme acessível, divertido, que usa recursos populares e até toscos para incrementar o tema da maconha.

Ficha Técnica:

Escrito, dirigido e produzido por: André Sigwalt e Augusto Soares
Elenco principal: Daniel Rocha, Tony Lee, Luana Frez, Thiago Stechinni, Tristan Aronovich e Cleber Colombo
Direção de Fotografia: André Sigwalt
Direção de Arte: Mônica Palazzo e Fernanda Feate
Figurino: Lolô Aranha 
Maquiagem: Jess Monge
Montador: Alexandre Britto
Colorista: Raphael Borghi
Pós-produção de Som: Effects 
Música Original: André Abujamra e Eron Guarnieri
Fotos: Beta Iribarrem e Mila Cavalcante
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