Edgar Brasil: o patrono dos diretores de fotografia brasileiros

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Por Danielle de Noronha

Edgar Mario
Edgar Brasil e Mário Peixoto durante as filmagens de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

Limite (1931), filme de Mário Peixoto, é considerado um dos grandes clássicos do cinema brasileiro. Não há como assistir ao filme e ficar indiferente à ele. Se, por um lado, o filme causa estranhamento, por outro, ele proporciona um grande fascínio. Por mais que não tenha feito carreira comercial na época de seu lançamento, anos depois ele foi reconhecido, principalmente por sua intenção artística, levada ao ‘limite’ por sua pequena equipe, formada por cerca de cinco pessoas.

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Cena de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

O longa-metragem inicia com a cena de urubus voando em cima de um morro, seguida de um plano de uma mulher abraçada por um homem algemado, imagem que será trabalhada novamente em outros momentos do filme. Esta imagem foi baseada numa capa do suplemento francês Vu, de número 74, que foi visto por Peixoto em 14 de agosto de 1929, em Paris. Em Limite, o responsável pela imagem é Edgar Brasil, o jovem que assina a direção de fotografia do filme. Essas cenas antecedem um longo plano no barco, que se encarrega de levar o espectador para o espírito do filme, em que passado, memória e presente são conectados.

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Capa da revista Vu e fotogramas da cena de Limite

Mário Peixoto escreveu o roteiro de Limite ainda na Europa. Quando chegou ao Brasil se relacionou com um grupo de teatro de brinquedo, o qual estava envolvido Raul Schnoor, que se tornou o ator de Limite. Foi através desse grupo que Peixoto conheceu Adhemar Gonzaga e logo Humberto Mauro, pessoas a quem ofereceu o roteiro. Ambos se interessaram pelos escritos, mas acharam que a história era muito pessoal e que ele próprio deveria dirigi-lo. Foi nesse momento que Humberto Mauro indicou Edgar Brasil para a fotografia, que após ler o roteiro aceitou participar do projeto. “Ele compareceu à casa de madame Schnoor, dizendo que tinha lido o filme num banco, sentado no jardim botânico, tinha gostado e estava pronto a realizá-lo conosco”, conta Mário Peixoto no documentário Onde a Terra Acaba (Sérgio Machado, 2001). Peixoto, com 21 anos, desejava realizar uma série de experiências no filme e Edgar Brasil se comprometeu a construir tudo o que fosse necessário para alcançar o referencial estético que o Mário Peixoto buscava.


Foto de filmagem de Limite divulgada no documentário Onde a Terra Acaba

A fotografia do filme é um dos aspectos responsáveis pelo encanto que ele produz. Foi devido a ela que o pesquisador Hernani Heffner se envolveu com a biografia de Edgar Brasil. “Eu era estudante de cinema da UFF, em 1982, e fui ver uma projeção do Limite na concha acústica da UFRJ. Só estavam três pessoas na concha, às oito da noite, eu e dois amigos do próprio curso de cinema. A gente adorou o filme e eu gostei particularmente das questões de câmera, de movimento de câmera, trabalho de invenção, não tanto fotográfico no sentido stricto da imagem, mas da construção dessa movimentação da imagem”, relembra o pesquisador.

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Taciana Rey em cena de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

Um tempo depois de ter assistido Limite, Heffner se inscreveu para um concurso de bolsa de pesquisa da Embrafilme, com um projeto sobre Edgar Brasil, principalmente pelo fato de não ter encontrado muitas informações sobre o fotógrafo. Ele foi selecionado e iniciou uma longa pesquisa sobre Brasil, que se ampliou ainda mais quando ele descobriu que Edgar Brasil tinha feito mais de 150 filmes, numa carreira absolutamente regular entre os anos de 1928 e 1954, ano de sua morte.

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Olga Breno em cena de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

Edgar Brasil: antes de Limite

Edgar Hauschildt (1902-1954), conhecido como Edgar Brasil – nome dado pela mãe – nasceu em Hamburgo na Alemanha e cresceu no Rio de Janeiro com a mãe Maria Hauschildt, com pouco contato com o seu pai, o fazendeiro Cornélio de Souza Lima. Conforme consta no livro Enciclopédia do Cinema Brasileiro, de Fernão Ramos, Brasil começa a trabalhar cedo e desde jovem demonstrava aptidão para o desenho, tendo sido matriculado por sua mãe em cursos livres da Escola de Belas Artes. Aos 18 anos alista-se no Tiro de Guerra, onde se tornará cabo em 1922, mas sem conseguir a promoção para sargento termina sua carreira militar em 1923.

Nesse mesmo ano, aos 23 anos, Edgar começa a trabalhar como tradutor na Inspetoria para Profilaxia da Lepra e Doenças Venéreas, onde conhece Haroldo Mauro, com quem Heffner teve a oportunidade de conversar: “Na verdade foi o Haroldo que levou o Edgar para o cinema”, explica. “O Haroldo gostava dos desenhos do Edgar, que desenhava muito bem. Por volta de 1925, o Edgar comprou uma câmera de fotografia e o Haroldo, que já admirava os seus desenhos, passou a gostar também das suas fotografias fixas”, conta o pesquisador.

Haroldo era irmão de Humberto Mauro, que havia iniciado junto com Pedro Cornello o período que hoje é conhecido como o Ciclo de Cataguases que ocorreu na cidade mineira no início da década de 20. “Quando o Humberto brigou com o Pedro, em 1927, o Humberto acaba ficando com os patrocinadores da cidade e tem que constituir uma pequena nova equipe e basicamente conseguir um novo fotógrafo”, diz Heffner. É nesse momento que o Haroldo faz a ponte entre o seu irmão e Edgar Brasil que, mesmo sem saber nada sobre uma câmera de cinema, vai para Cataguases iniciar sua carreira cinematográfica com Humberto Mauro.

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Cena de Sangue Mineiro

Em Cataguases, Edgar faz a fotografia dos filmes Brasa Dormida (1928) e Sangue Mineiro (1930). Para o professor Carlos Augusto Calil esses filmes foram o seu aprendizado na profissão: “Ele imediatamente se destacou pela segurança, inesperada num iniciante, e pelo enquadramento rigoroso, que contribuía para a fluência narrativa desses filmes”. Heffner menciona que Humberto Mauro havia dito que ia trazer um grande fotógrafo do Rio e ficou constrangido em dizer que ele não entendia nada de cinema, mas resolveu correr o risco. “Se você comparar as primeiras imagens feitas por Edgar, no Jockey Club do Rio, com o que sobrou da época, ele já estava no padrão do cinema brasileiro do período e, em alguns momentos, até apresentava uma criação estética mais sofisticada, embora nos primeiros anos ele ainda cometesse muitos erros. Ele já tinha talento suficiente, não só pra se inserir, mas também pra ultrapassar o estágio de criação fotográfica que existia naquele momento. E ele foi incorporado”, complementa o pesquisador.

Após as filmagens de Sangue Mineiro, Brasil volta para o Rio de Janeiro e a atriz e produtora Carmen Santos, a quem ele conheceu em Cataguases, o convida para fotografar Lábios sem Beijos, que foi interrompido devido à gravidez da atriz. Em seguida, surge o convite de Mário Peixoto para fazer Limite. “A reduzida equipe de Limite passou – sem pressa – um ano em filmagens em Mangaratiba, estado do Rio de Janeiro. A sintonia perfeita entre diretor e fotógrafo permitiu-lhes experimentações inéditas. Complexos planos-sequências, que implicavam movimentações trabalhosas, e sucessivas correções de foco, foram enfrentados por uma câmera na mão, inusual na época”, conta Calil.

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Vinicius de Moraes; Carmem Santos; Mário Peixoto

Heffner explica que Peixoto e Brasil fizeram uma parceria bastante incomum, não só dentro do cinema brasileiro, como também na história do cinema, porque o Edgar Brasil seguiu fielmente o espírito do roteiro, realizando diferentes tipos de experiências para alcançar as pretensões de Mário Peixoto.“Eles vão buscar um tipo de imagem reluzente, incandescente, de muito brilho, de um contraste muito particular, de inserção de meio tom, que é algo muito inusitado para o cinema brasileiro naquele momento”, avalia. Além disso, o pesquisador conta que Limite foi o primeiro filme brasileiro totalmente feito com película pancromática, o que solicitou que fossem realizadas diversas pesquisas. Desta forma, Limite é fruto da colaboração entre os dois, que possibilitou a criação de uma imagem muito incomum no panorama cinematográfico brasileiro do período.

O diretor de fotografia Lauro Escorel, ABC conta que foi levado ao encontro de Mário Peixoto pelo cineasta Ruy Solberg, quando a Embrafilme considerava a possibilidade de financiar o seu projeto A Alma Segundo Salustre. “A ideia era que eu fotografasse o filme. Minha lembrança do encontro é de que Mário Peixoto sonhava em repetir a experiência da filmagem de Limite. Foi nesse contexto que ele descrevia a equipe morando toda junta num barco durante as filmagens, e Edgar Brasil revelando, a cada noite, as tiras de teste do material filmado durante o dia”, lembra o fotógrafo.

No documentário Onde a Terra Acaba é narrada uma lembrança de Mário Peixoto das filmagens de Limite: “Eu enquadrava cada plano e o Edgar, sempre muito discreto e eficiente, os executava com perfeição. Para as cenas com a câmera em movimento, Edgar idealizou um andor, com dois homens na frente e dois homens atrás. E ele ficava dentro do andor, filmando. Edgar os ensaiava que nem bailarinos, quando os da direita iam com o pé direito, os da esquerda iam com o pé esquerdo para não haver balanço. Para isso ele treinou os empregados da fazendo de meu tio, que trabalharam todo o filme conosco nesse movimento”.

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Edgar Brasil durante a filmagem de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

Calil ainda destaca que Edgar Brasil construiu equipamentos especiais para realizar travellings laterais e verticais e acrescenta: “E sua câmera, de tão livre, chega a tornar-se personagem do filme. A fotografia e a câmera em Limite são prodigiosas. Impossível separar a fotografia do filme de sua direção, tal é sua simbiose. Mário Peixoto nunca deixou de reconhecer a contribuição “inestimável” de Edgar Brasil ao seu filme-fetiche, concluído em 1931”. Sobre esse tema, Peixoto diz: “Bom, [Edgar Brasil] era um homem de uma inventiva extraordinária, de uma capacidade extraordinária. Por exemplo, maquinarias que naquela época seria impossível se importar, ele realizou-as todas no Brasil. Ele inventou muitas outras coisas, muitas outras maquinarias. Um elevador, que seria possivelmente um substituto pra grua atual. […] Peças da própria câmera. O próprio laboratório foi todo montado por ele”.

Após Limite, Edgar Brasil e Mário Peixoto iniciaram um novo projeto com Carmen Santos. O filme Onde a Terra Acaba, que inspirou o nome do documentário de Sergio Machado, não terminou de ser filmado devido divergências entre Peixoto e a atriz. Para Mário Peixoto, a fotografia desse filme era ainda mais bonita do que a de Limite, principalmente pelo fato que nesse momento eles contavam com mais recursos. Porém, grande parte do material que foi filmado se perdeu no incêndio ocorrido na Brasil Vita Filmes.

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Filmagem de Limite (imagem retirada do documentário Onde a Terra Acaba)

Cinema de estúdio: da Cinédia à Vera Cruz

Após as filmagens de Onde a Terra Acaba, Edgar Brasil, que precisava sustentar ele e a mãe, necessitava de um emprego mais regular. Nesse momento, Adhemar Gonzaga, percebendo a sua capacidade, oferece a Brasil o emprego de principal diretor de fotografia do jovem estúdio Cinédia. Localizado em São Cristóvão, a Cinédia era pioneira na tentativa de criar um estúdio cinematográfico no país e é o início de um novo momento na vida do fotógrafo, que começa a sua carreira em cinema de estúdio. “Os primeiros filmes do Edgar são todos feitos em locação. São filmes feitos basicamente com luz natural ou com um ou outro refletor. São filmes que giram em torno da natureza como elemento clássico mais significativo. Já na Cinédia ele vai fazer cinema de estúdio. Precisa reaprender a trabalhar a questão da luz e da fotografia dentro de uma outra perspectiva. Gonzaga comprava livros, ele fazia testes e assim aprendeu como era o cinema de estúdio. Inclusive, na Cinédia há artigos técnicos que o Edgar escreveu sobre lâmpadas, sobre refletores…”, elucida Heffner.

Bonequinha
Cena de Bonequinha de Seda

Na Cinédia, onde trabalha cerca de cinco anos, ele faz filmes como: Alô, alô, Brasil (1935), Estudantes (1935) e Bonequinha de Seda (1936). Cada vez mais cresce o seu domínio da fotografia de estúdio que, segundo Heffner, é absolutamente excepcional para as condições de trabalho que ele tinha no momento: “Não que ele também não errasse eventualmente, e um dos principais problemas para o Edgar é que as películas tinham baixa sensibilidade, isto é, qualquer movimentação de câmera ou qualquer situação de luz um pouco mais limitada há o problema de foco. É bonito ver as soluções que ele desenvolve. O filme Bonequinha de Seda é o primeiro a usar grua, que o próprio Edgar desenhou, mas é possível ver alguns problemas quando essa grua se movimenta, como por exemplo, o ator saindo de foco. Os problemas acontecem por causa das limitações da época, mas ele vai resolvendo de uma forma muito bacana. Do ponto de vista de acabamento, o filme O samba da Vida (1937) já é tecnicamente perfeito e ele já não comete mais esses erros”.

Hernani

O pesquisador Hernani Heffner diz: “Do ponto de vista pessoal, o que me fascinou mesmo em Limite foi esse arrojo fotográfico, essa capacidade da câmera ir em praticamente em todos os lugares que ela quisesse”.

Heffner ainda conta que o filme em que ele levaria suas experiências mais a fundo parou no meio e os resultados não foram conhecidos. O longa-metragem era Alegria, o segundo trabalho que Brasil faz com o Oduvaldo Vianna. Brasil havia realizado uma série de experiências, sobretudo voltadas para os efeitos especiais. Logo depois, Oduvaldo sai da Cinédia, seguido por Brasil, que vai trabalhar na Brasil Vita Filmes e na Sonofilms.

Desse período, seu trabalho de maior importância é Inconfidência Mineira (1948), projeto de Carmem Santos que começou a ser filmado em 1941. Porém, para o pesquisador Hernani Heffner, o mais importante dessa época é o seu contato com Watson Macedo, a quem ele conhece na Vita Filmes. Além disso, destaca a criação do laboratório fotográfico A Figura, fundado em 1942 por Brasil para que ele pudesse se sustentar. Através deste laboratório, ele presta serviços de fotografia e realiza pesquisas sobre cor.

Em 1943, Edgar Brasil se transfere para a Atlântida, após convite de Moacyr Fenelon para ser o primeiro diretor de fotografia da companhia, que foi fundada em 1941. “Pouco tempo depois, Brasil leva o Watson para a Atlântida, como uma espécie de pupilo, que depois vai se destacar como um grande diretor de chanchadas, muitas das quais o Edgar fotografou”, conta Heffner.  Diferente da Cinédia, a Atlântida possuía equipamentos limitados e já em desuso, conforme explica Fernão Ramos em seu livro. “É isso que consagra o Edgar como o grande fotógrafo brasileiro em atividade dos anos 1940, por conta da extrema limitação do trabalho que a Atlântida tinha e das soluções que o Edgar consegue mesmo dentro dessas limitações, que eram bastante grandes naquele momento”, diz Heffner.

Na companhia, ele estreia com Moleque Tião (1943) e ainda fotografa filmes como Gente Honesta (1944),Terra Violenta (1948) e Aviso aos Navegantes (1950). Foi nesse período que o cineasta Roberto Farias conheceu Edgar Brasil. “Eu deveria ter algo como 16 anos, em Friburgo. Fui colega de turma de Dickson Macedo, no Colégio Modelo de Nova Friburgo. Dickson era irmão de Watson Macedo, o diretor dos filmes de Oscarito e Grande Otelo, na época. A mãe de Macedo tinha o Hotel Friburguense, onde ele, Edgar, Cajado Filho, Alinor Azevedo e outros costumavam hospedar-se no fim de semana. Não preciso dizer do fascínio que essa equipe exercia na rapaziada, principalmente em mim. Eles também se reuniam em Friburgo para escrever os roteiros dos filmes e eu paquerava cada lauda escrita, antecipando e imaginando o filme que sairia dali”, relembra Farias.

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Cena do filme Moleque Tião

Roberto Farias, que no início dos anos 1950 começou a trabalhar na Atlântida, relembra que: “Edgar Brasil tinha um humor extremamente inteligente, o que conquistava a admiração das pessoas. Ele era muito tranquilo. Fumava cachimbo, parecia um Lord inglês. Calmo, não se afobava. Não dava bola à ansiedade do Watson, que queria filmar uma cena atrás da outra. Mas era rápido no seu trabalho. Para ele, o cinema brasileiro tinha de usar termos próprios, em português. E instituiu o comando “Cena!”, em vez de “Ação”, que seria apenas a tradução do inglês. Os barn doors dos refletores eram chamados de “Asa de urubu”, conta o cineasta.

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Raimundo Campesato, Ivon Cury, Geny Macedo, Edgar Brasil e Roberto Farias, durante as filmagens de É Fogo Na Roupa (1952)

Segundo Heffner é a sua produção na Atlântida que o credencia pra ir trabalhar na Vera Cruz, companhia paulista criada em 1949, onde faz filmes como Veneno (1952) e Candinho (1954). “Num momento em que a Vera Cruz já tem alguma dificuldade com os técnicos estrangeiros e com os gastos, Adhemar Gonzaga apresenta o Bonequinha de Seda ao Alberto Cavalcanti, pedindo que ele prestasse atenção na fotografia. Cavalcanti gosta do trabalho do Edgar, acaba contratando-o e, na verdade, ele nem estava mais lá quando o Edgar chega”, explica o pesquisador.

Como não teve a oportunidade de trabalhar com Edgar Brasil na Vera Cruz, Cavalcanti o convida para fotografar o seu filme Mulher de Verdade, em 1953, na Kino Filmes. Porém, o diretor de fotografia não o pode terminar, pois morreu num acidente de carro na Via Dutra, em 04 de janeiro de 1954. “Ele foi para o Rio pra passar o natal com a mãe e quando estava voltando para São Paulo com dois assistentes de câmera do Cavalcanti, perto da cidade de Cruzeiro, um carro que vinha na direção contrária perdeu a direção e bateu de frente. No carro deles, ele foi a única pessoa que morreu porque estava dormindo, porque se tivesse acordado poderia ter se segurado, se machucado, mas não morrido”, lamenta Heffner.

O Olhar de Edgar Brasil

Edgar Brasil teve uma carreira voltada para o cinema de estúdio. Em cada companhia que passou encontrou diferentes recursos e distintos ‘tipos’ de cinema. Conforme pontua Hernani Heffner, o que marcar o seu trabalho na Cinédia é o desenho de um estilo em que ele procura explorar, principalmente, os elementos e os traços de uma cinematografia Art Decó que marca muito os filmes da companhia: “Filmes como Bonequinha de Seda, são filmes que tem esse tipo de cinematografia, em que você pode encontrar brilhos pontuais. Edgar procura ressaltar os elementos cênicos, fazendo um trabalho com o ator – principalmente com as atrizes – dentro de uma referencia hollywoodiana. Nesse sentido, a Cinédia busca referências clássicas”.

Quando mudou para a Atlântida, que produzia um cinema de feição social, teve que mudar também a forma de fotografar, já que a fotografia de glamour que a Cinédia exibia não cabia mais dentro da proposta da nova companhia. “O que você tem na Atlântida é uma fotografia mais sóbria, mais contida, mais básica e também mais limitada tecnicamente porque a companhia tinha muito menos instrumentos de trabalho do que a Cinédia. Então Edgar tem que ir para uma circunstância de trabalho extremo e dentro dessa circunstância ele consegue resolver com esse estilo mais sóbrio, que tem momentos significativos”, esclarece Heffner. “Talvez um dos mais significativos seja um filme chamado Também somos Irmãos, de José Carlos Burle, que é muito famoso por ser o primeiro filme a abordar a questão racial no Brasil. Ele mescla cenas de estúdio com cenas ao ar livre, essa mescla é bastante razoável, em termos de equilíbrio fotográfico, e mostra certa maturidade de Edgar. Ele foi o primeiro que fotografou de fato uma favela no cinema brasileiro, em Também somos Irmãos, No Reino do Samba, que são filmes anteriores ao Rio, 40 Graus (1955)Aliás, quem fotografou o Rio, foi Hélio Silva, que foi o último assistente de Edgar. Quem terminou Mulher de Verdade, após a sua morte foi o Hélio Silva, foi o que o credenciou a virar diretor de fotografia e a trabalhar com o jovem Nelson [Pereira dos Santos] e retratar a favela que é tratada a maneira “edgariana”, vamos dizer assim”, acrescenta o pesquisador.

Para Heffner, o grande salto de Brasil, em termos de trabalho de estúdio criativo, acontece na Vera Cruz e na Kino Filmes, “devido ao fato de que ele gostava da iluminação expressionista, gostava de trabalhar essa ideia do claro/escuro e soube perceber muito bem qual era a contribuição que o filme noir hollywoodiano deu nos anos 1940, em relação a essa estratégia de iluminação”. O pesquisador explica: “Se você for ver um filme como Veneno, um melodrama policial feito na Vera Cruz, o filme em si não tem grande importância, não é bem resolvido dramaticamente, mas tem uma fotografia brilhante, toda fragmentada. É uma fotografia até difícil porque o personagem principal trabalha numa vidraçaria, então tem todo o jogo de espelhos típicos nos filmes noir, que o Edgar faz de uma maneira muito impressionante. De fato, eu considero tanto tecnicamente, quanto esteticamente, o trabalho mais bem resolvido dele, embora seja um filme clássico e uma fotografia clássica, diferente de Limite, que é uma fotografia de invenção. É o auge dele, a maturidade dele, tanto técnica quanto artística, e ali ele tinha todas as condições possíveis para trabalhar, então o trabalho dele ganha um ressalto maior e isso prossegue no filme seguinte que ele faz pra Vera Cruz, que é o Candinho. O filme é muito delicado em termos de trabalho de luz, também é legal ver como ele resolve a relação entre campo e cidade. É um filme muito bonito e parte da magia do filme vem da fotografia”.

Veneno

Ainda segundo o pesquisador, o seu último trabalho, que ele fez só parcialmente, já era um filme mais inusitado, com um roteiro elaborado por Cavalcanti sobre uma mulher bígama, que inverte o tradicional machismo brasileiro. “Então seria o primeiro filme do Edgar que ele talvez estivesse tentando alguma coisa mais européia e menos hollywoodiana. No ponto de vista da palheta de cinzas, o filme é todo rebaixado, com um cinza bem clarinho, aparentemente neutro, sem tanto contraluz. Seria um passo adiante na carreira dele. Provavelmente ele já estava percebendo as mudanças da fotografia, que a gente chama de moderna, que vai se associar mais à Europa do que aos Estados Unidos”, esclarece.

Carlos Augusto


O professor Carlos Calil conta: “No final da vida, Edgar trabalhou na Vera Cruz, onde fotografou Veneno e Candinho. Em seu último filme, realizado no estúdio da Maristela, teve a oportunidade de trabalhar com Alberto Cavalcanti na sua comédia amoral Mulher de verdade”.  

Calil pontua que Edgar Brasil não deixou herdeiros diretos, porém acredita que seu trabalho deixou uma “continuação”: “Sua morte inesperada impediu-lhe de travar conhecimento com a geração do Cinema Novo, onde surgiria um involuntário discípulo, dotado igualmente do talento de se transformar em homem-câmera: Dib Lutfi. Dib deixou inúmeros testemunhos de sua habilidade em filmes como Terra em transe (1967) e Os deuses e os mortos (1970). A dinastia tem prolongamento com Cesar Charlone, cuja fotografia e câmera em Cidade de Deus (2002) obtiveram reconhecimento internacional, chegando à indicação ao Oscar”. Para Heffner, há uma influência maior do trabalho de Brasil numa certa fotografia clássica que permanece nos anos 1950 e 1960. “De uma forma direta através de seu sobrinho neto, José Rosa (Vidas SecasGrande Sertão), ou de outras pessoas que admiravam o seu trabalho, como o Mário Carneiro (O Padre e a Moça, Bom dia, Eternidade)”, finaliza o pesquisador.

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Cena de Limite (imagem fornecida pela Cinemateca Brasileira)

Para Escorel, Edgar Brasil foi o primeiro diretor de fotografia brasileiro a colocar-se e a atuar como criador/inventor de imagens: “Limite é a prova disso, marco fundador de uma cinematografia nossa”, pontua. “A revisão recente da versão restaurada de Limite me confirmou a excelência do seu trabalho, nos enquadramentos, na movimentação da câmera e no domínio expressivo da luz. Por isso, e pela inegável qualidade do conjunto da sua obra, me junto a aqueles que consideram Edgar Brasil o patrono dos Diretores de Fotografia brasileiros”, concluí Escorel.

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