Lílis Soares: “Mami Wata”

Silvia Gangemi, ABC entrevista a diretora de fotografia sobre o premiado filme nigeriano
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Por Silvia Gangemi, ABC

Este ano, a diretora de fotografia Lílis Soares recebeu em Sundance o Prêmio Especial do Júri pela direção de fotografia de “Mami Wata”, filme nigeriano dirigido por C.J. Obasi.

Na vila à beira-mar de Iyi, a reverenciada Mama Efe (Rita Edochie) atua como intermediária entre o povo e a todo-poderosa divindade da água, Mami Wata. Mas quando um menino morre por um vírus, a devotada filha de Efe, Zinwe (Uzoamaka Aniunoh) e a cética protegida Prisca (Evelyne Ily Juhen) alertam a Efe sobre a agitação entre os aldeões. Com a chegada repentina de um misterioso desertor rebelde chamado Jasper (Emeka Amakeze), um conflito irrompe, levando a um violento choque de ideologias e uma crise de fé para o povo de Iyi.

A diretora de fotografia Silvia Gangemi conversou com Lílis Soares sobre sua trajetória e o trabalho no filme.

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Lílis, o que te levou para o audiovisual, para a fotografia, o que te moveu? Na infância você tinha indícios de que gostaria de trabalhar com imagem… Como surgiu isso?

Não foi algo óbvio. Eu sempre trabalhei na área, nunca fiz outra coisa. Na verdade, no início, o que me chamou mais atenção foi a representação dos corpos no esporte de alto rendimento. Fiz estudos sobre a beleza atlética, representação desses corpos na Grécia Antiga e avanços tecnológicos na captação da imagem esportiva. Isso me fez começar a estudar imagem durante a faculdade. Eu fui atleta durante muitos anos e esse aspecto me chamava atenção. Fiz um filme que era ligado a esse assunto, e uma coisa foi puxando a outra. Eu gostava muito de cinema francês, mais precisamente a Nouvelle Vague me chamou bastante atenção na relação de ruptura estética da câmera ou da montagem. Enfim, tudo foi acontecendo naturalmente. Naturalmente mesmo, porque na minha família ninguém é da área. Hoje, minha mãe e meu pai sabem um pouco mais porque eu converso muito com eles e os levei para um set de um filme que para nós era muito emblemático (“Ó, paí ó, 2”). Acho que foi o momento no qual eles entenderam mais a minha profissão. Desde o início dos meus estudos e carreira eles sempre me apoiaram muito. Acho que isso fez muita diferença, porque é uma área muito difícil. Com um perfil como o meu, então… E no início, eu tateei tudo, fiz muitas funções, o que foi muito bom porque eu comecei muito cedo, entrei na faculdade cedo também, aí tive tempo de ir tateando. Depois fui para a França estudar direção de fotografia, que foi bem mais específico. Em resumo foi isso: muito trabalho, estudo, um pouquinho de coragem e muitos sacrifícios.

Quando você diz faculdade, você já estudou cinema?

Eu estudei, eu fiz 2 faculdades. Estudei Rádio e TV na UFRJ, na ECO (Escola de Comunicação) na Praia Vermelha. Eu entrei em 2004, saí em 2007, e depois de alguns anos trabalhando no Brasil eu fui para a França para estudar cinema no Institut de l’image et du Son.

Quando você foi para a França você já sabia que você queria fotografia? 

Sim, já sabia.

Você falou da composição dos corpos como atleta, você já se interessava pelo visual, trafegou um pouco por outros departamentos, mas foi para a fotografia. Como foi esse clique?

Eu comecei na TV, em edição, e depois fui para câmera. Fazia muita reportagem. Era um canal de esportes, porque no início meu sonho era trabalhar nessa área. Eu tenho várias opiniões sobre como o esporte é visto e tratado aqui no Brasil. Então, eu acho que naturalmente fui perdendo um pouco a vontade de estar no esporte. Primeiro, eu olhava para o lado e não tinha ninguém com perfil igual ao meu, parecia que era impossível, a impressão naquela época era que era impossível progredir. Na TV, há alguns anos, a gente não via um repórter negro, ainda mais em esporte. Sabe quando você sente que não vai crescer, não vai dar pé? Eu sentia, mas eu tinha vontade, eu tinha um desejo. Eu queria olhar mais profundamente para a estética também, que é uma coisa que me move demais. E eu acho que mesmo em reportagem a composição, o estudo estético, é importante para passar a informação. Eu gosto muito do pensamento sobre construção da mensagem, símbolos, construção do discurso… É um interesse que vem desde a faculdade, leituras que fazemos em comunicação social e até hoje tento basear meus projetos de fotografia no estudo estético da mensagem. 

Você gostar do cinema francês foi o que te levou a querer estudar na França?

É, eu tinha aquela visão da Nouvelle Vague, da ruptura estética, aquilo me chamava muita atenção, novas possibilidades. Eu fui porque em um momento da minha vida apareceu uma oportunidade, eu agarrei e fui. Eu nunca tinha voado de avião, para você ter uma noção. Quando eu fui para França, fui com tudo, e foi assim: “eu vou e sei lá o que vai acontecer” (risos). 

A mudança para França abriu muitas portas e também a mente, né? 

Eu me identifiquei muito, foi uma adaptação muito rápida, não tive problema nenhum. Eu adoro pensamento, a possibilidade de chegar muito perto das coisas, isso foi maravilhoso. Mas teve também problemas, não é tudo maravilhoso, não foi um tempo fácil, muito longe disso. Mas é isso, era difícil aqui, foi difícil lá também. 

Quanto tempo você ficou lá?

Eu fiquei 6 anos. Eu fui tirando proveito mesmo, fui fazendo de tudo. Eu comecei na elétrica, eu me formei e já fazia estágio na elétrica, fiz muita coisa nessa área. Depois, eu fui pra assistência de câmera e fiz a direção de fotografia em alguns projetos pequenos. Não fiquei 10 ou 20 anos, como vejo muitas histórias aqui, não fiquei esse tempo todo, mas fiz um tempo. Tudo isso na França, eu não tinha ainda muitos contatos no Brasil.

Agora sim!

Sim, agora é diferente e me sinto motivada aqui. Apesar de não ter muitas expectativas quanto ao nosso país, aqui as coisas são muito difíceis e existe uma questão de invisibilidade muito grande. Eu tive uma trajetória um pouco diferente. São vários nichos em nossa área, eu fui tateando e eu me abri, nunca fui de ter medo. Eu já trabalhei em muitos lugares diferentes, com pessoas diferentes. Na África, por exemplo, foram três projetos, sendo o “Mami Wata” o primeiro no qual atuei como diretora de fotografia. Mas antes trabalhei alguns meses em projetos no Congo, na Angola… Neste ano de 2023, fui pela quarta vez ao continente africano, dessa vez para Burkina Faso, onde ganhei um prêmio em nossa estreia africana. 

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Qual o prêmio? Onde?

Ganhei o prêmio de melhor direção de fotografia na 28ª edição do Festival Pan-Africano de Cinema e Televisão de Uagadugu (Fespaco), em Burkina Faso. Esse é o mais importante festival africano de cinema, os grandes cineastas africanos passaram por lá, era um sonho para mim. “Mami Wata” ainda levou o prêmio de melhor direção de arte e prêmio da crítica africana Pauline S. Vieyra. Viver isso foi incrível.

O filme foi gravado na Nigéria?

Na verdade, o filme é nigeriano, mas gravamos no Benin, país vizinho à Nigéria. Boa parte da equipe era nigeriana, mas tínhamos no set também profissionais do Benin, Costa do Marfim, Estados Unidos, dentre outros países. Nós gravamos durante a pandemia, havia muitos protocolos de entrada e saída nas fronteiras, foi um período complicado. Foi uma experiência muito especial para todos nós. Eu venho aprendendo bastante com todas as oportunidades que tenho vivido dentro ou fora do Brasil. 

Como você conheceu o diretor de “Mami Wata”, C.J. Obasi? Como ele te conheceu, como você recebeu o roteiro, como foi esse encontro?

Eu fui indicada num lab na Noruega. Indicaram outros nomes também, ele viu meu trabalho, gostou e começamos a conversar. Deu match! Foi muito forte, bem legal. A partir daí, começamos a desenvolver o trabalho remotamente. Trabalhamos muito por vídeo chamada, e tivemos trocas muito interessantes. Eu me interesso muito pelo tipo de cinema que C.J. me propõe e, de fato, foi um dos melhores roteiros que eu já li.

Falando da cultura e das narrativas do país

Acho que é sobretudo sobre uma construção estética. Nós falamos muito sobre tentar criar uma narrativa genuinamente africana, mas também com um olhar afrodiaspórico na direção de  fotografia. Vimos muitos filmes juntos, discutimos as cenas e também entendemos juntos o que não queríamos reproduzir.

Um olhar de fora, né?

Exato! Não queríamos reproduzir um olhar de quem está observando, quase como um voyeur. É uma construção de olhar que possui também uma proximidade muito grande com o que eu acredito. Eu sempre falo que o filme para nós é um experimento. Tentamos algo que nunca tínhamos visto em termos de imagem. Há de certa forma no filme alguns traços dos filmes que já fizemos antes. Quando nos encontramos tive a impressão de poder ir mais fundo em uma pesquisa que eu já vinha fazendo há muito tempo. E C.J. me deu espaço para construir junto com ele. Isso foi incrível. Faz muita diferença quando você tem o espaço pra se colocar, para trabalhar. Não houve problemas com a equipe também, a minha equipe foi muito boa. Todo mundo comprou a ideia do filme. Eles acreditaram muito na história e na maneira como estávamos fazendo, apesar das muitas limitações. Imagina, no meio da pandemia, sem vacina, uma loucura… Eu acho que nos colocamos muito no projeto. Eu me coloquei muito porque as oportunidades aparecem e por mais difíceis que pareçam temos que aproveitá-las. Pelo menos na minha vida sempre foi assim: eu aproveito as oportunidades e vou tentando traçar a minha trajetória. 

E não só isso, né, Lílis? Quando a gente acredita e está inteira num projeto, ou em qualquer coisa da nossa vida, é diferente de estar ali só cumprindo função, só pra pagar conta. Estar inteira, se entregar, participar, construir o que é preciso a partir do que eu posso trazer para somar nessa história… Daí a gente dorme feliz, daí faz sentido a vida.

É uma relação com trabalho que é muito específica, né, Silvia? A grande maioria da população não consegue desenvolver isso. Eu não chamo de privilégio, porque eu acho que é uma escolha. Eu não consigo viver me sentindo sufocada ou infeliz ao ponto de estar em uma função ou em um ofício que me deixe completamente incapacitada. Fiz uma escolha que me levou a períodos muito difíceis da minha vida. Porque é isso, escolhi trabalhar numa área que, no mundo, há pouquíssimos perfis iguais ao meu. Muito recentemente houve uma abertura para a inserção de profissionais com perfis mais diversos. No entanto, como sociedade, ainda estamos em processo de adaptação. Ainda é desafiador. 

Tem que amar muito! Voltando para “Mami Wata”, o conceito que vocês trabalharam foi o que te levou a querer fazer esse filme em preto e branco? Pelo pouco que tive acesso, ele é muito contrastado. Trabalhar PB com peles negras é mais desafiador? 

Eu não acho que fotografar pessoas negras seja desafiador, acredito que existe um olhar racista no qual a fotografia é baseada desde sempre. Eu acho que a forma como os dispositivos são utilizados na criação da imagem é que faz com que tenhamos esse olhar baseado numa estética desvalorizante sobre esses corpos. E, claro, a reprodução e massificação dessa estética. E isso é fato, né? O filme é em PB porque o diretor queria que fosse, era uma vontade dele e era o meu sonho fazer um filme em PB. Eu baseio grande parte do meu trabalho na estética negra, em corpos negros. Eu tenho alguns filmes, acho que a maioria dos meus filmes é com protagonistas negros… Sabíamos dos desafios e eu acho que é isso que torna o projeto interessante. Eu procurei estudar mais e entender quais eram as minhas margens, onde eu poderia atuar melhor no gráfico e como eu queria essa fotografia. Eu poderia ter escolhido uma fotografia com mais escalas de cinza. No entanto, por gosto mesmo, prefiro trabalhar o PB mais nos extremos. Por isso, meu trabalho foi realizado sobretudo nas escalas de cinza escuro, com poucos cinzas médios. Conversamos muito sobre esse aspecto desde o começo porque queríamos sentir mais a pele no preto e branco. Mesmo no escuro, eu acho que 80% do filme é filmado à noite, na floresta, na praia, então eu queria uma luz que fosse muito desenhada e que valorizasse tanto a pele quanto a textura, mesmo à noite em uma pele negra retinta. Tem que se marcar isso, são negros retintos. Não são pessoas com o meu tom de pele.

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Sim, lá na Nigéria tem muitas pessoas negras retintas.

Temos muitas pessoas negras retintas no Brasil também. É uma questão importante e traz uma escala que é muito específica em termos de trabalho, de gráfico, onde você vai trabalhar, como você vai desenhar essa luz, como essa luz vai bater na pele, há várias questões. Enfim, eu trabalhei na tentativa de criar um equilíbrio entre o equipamento que eu tinha disponível e onde eu podia chegar. Por isso eu digo que foi um experimento. Obviamente, tivemos limitações de equipamento, como sempre na nossa vida, e às vezes eu vejo e sinto falta de algo. Eu falo com o C.J., “mas naquela cena… se tivesse…” e ele responde: “Lílis, se tivesse, não seria o que é”. Então, está tudo certo, porque foi nosso primeiro filme juntos. E já tivemos um retorno muito interessante da crítica e do público, já é grandioso. Mas, como fotógrafa, eu vejo o filme esmiuçando tudo. Porque é muito legal analisar, entender o que você teve e onde você podia estar melhor. Às vezes, em um segundo, podemos ter uma ideia que pode solucionar uma cena. Nesse filme, foram muitos momentos assim, em que uma ideia técnica solucionava. A análise é importante para se achar soluções mais rapidamente em uma próxima oportunidade. C.J. e eu nos preparamos muito. Fizemos muitas leituras de roteiro juntos, decupamos e discutimos todas as cenas. Gosto muito desse processo na feitura do filme e acho também uma etapa muito importante. Temos nossas anotações e estudos escritos cena por cena. Às vezes, na pressa, não há esse tempo de esmiuçar a história, mas isso fez muita diferença em termos de resultado. Foi um dos aspectos que me fizeram querer trabalhar com ele nesse filme. Foi um encontro muito especial.

Aí vocês conseguiram, com o roteiro, ir na locação e já decupar, sentir tudo isso é outra coisa…

Exatamente. Tomamos esse tempo. Foi precioso e também muito enriquecedor para mim. O resto foi entender as escalas de cinza, qual era a margem que eu tinha para trabalhar e para ter esses detalhes da pele negra. 

Conseguiu fazer testes?

Fizemos testes durante um dia com algumas limitações, mas fizemos. Depois debatemos com figurino, maquiagem e direção de arte. No entanto, acho que o primeiro teste real foi o primeiro dia de gravação, quando tínhamos o equipamento completo. Gravamos uma ou duas cenas somente e analisamos juntos o resultado, conseguimos entender alguns aspectos importantes. 

Qual foi a câmera e as lentes que vocês usaram?

Usamos a Alexa Mini com as lentes zoom Angenieux e zeiss CP3.

As mais abertas? A 15mm é mais escura.

Não tive a 15mm no meu kit. Trabalhei em 2.1 de diafragma que é o máximo de abertura das lentes normais e mais longas do kit.. Eu achei bom porque foram lentes claras e eu conseguia ter margem pra trabalhar na pós. Nas condições e opções que eu tive, foi o melhor. O material bruto possui um direcionamento bastante concreto para o trabalho de pós. Tentei chegar o mais próximo do que eu queria sem perder detalhes nas baixas. Foi realmente desafiante, pois tivemos um atraso na entrega dos equipamentos e mudança de fornecedor. Tive que mudar minha lista de equipamentos logo antes de começar as gravações e me adaptei a essa nova realidade. Fiz as mudanças e escolhi as lentes CP3 porque era uma lente clara e sharp, poderia me dar os detalhes que eu queria e alguma margem para trabalhar no color granding. Com a Alexa, eu consegui trabalhar a textura desde o shooting e também pude ter um dynamic range mais seguro. No final, eu tive um material gravado bem direcionado. 

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Conseguiu trabalhar dentro do wave?

Eu trabalhei onde eu queria dentro do gráfico. Eu tinha margens pequenas, mas dentro das frequências que eu escolhi trabalhar. Foi um desafio muito grande pois eu não possuía um caminhão de luz com muitas alternativas.

Qual era sua maior luz?

A maior luz era HMI M40 4K. Não havia cabeças grandes ou um balloon light. Eu tentei trabalhar as linhas, silhuetas, distâncias, e calcular o local certo de movimentação. Eu trabalhei muito com os atores e as atrizes pra saber qual seria a minha melhor movimentação e também indicando os pontos que eles podiam usar pra dar entonação em alguma atuação. É tudo muito detalhista e trabalhoso. Eu saí de lá esgotada, mas feliz pelo aprendizado.

Bom o elenco e o diretor aceitarem isso. Porque, às vezes, muitos(as) diretores(as) não querem que você entre tanto para não engessar a atuação. Também tem isso, a gente também tem que saber o meio termo pra fazer a nossa luz.

Vai muito da direção e das condições que se tem. Eu não faço isso pra engessar, eu faço para potencializar alguma a atuação ou pontuar algo que a atriz ou ator queira, e isso vai ajudar a direção. É possível saber quando se tem mais abertura para esse tipo de construção. Como eu conversei muito com o C.J., criamos nosso método de trabalho juntos e sabíamos o que queríamos. Tínhamos desenhado juntos a movimentação. Nossas discussões na preparação do filme foram importantes para chegar em determinados lugares e eu acho que conseguimos porque pela recepção, seja na África, Estados Unidos, seja na Europa, está sendo interessante. Eu não tenho do que reclamar, porque foi o meu trabalho, eu estou lá completamente nesse filme, eu me vejo nele e isso é a melhor coisa que se tem. Quando vemos um filme e nos vemos nele, está tudo certo. Agora eu falo pro C.J. assim: “o próximo tem que ser com um pouco mais de estrutura” (risos). E eu acho que merecemos. Tenho um carinho e gratidão muito grande por essa equipe.

A gente sempre pede: “Por favor, me dá mais tempo, me dá mais pré”. Hoje em dia eu vejo o quão importante é a pré, a pré é tudo. 

Sobretudo a qualidade da pré. Às vezes nem é o tempo, é a qualidade.  Às vezes, em duas semanas de pré, se você conseguir fazer uma boa organização de trabalho, você consegue fazer um importante estudo do projeto. Melhor ainda quando se consegue incluir na discussão partes criativas importantes do filme. As trocas e compreensão do roteiro e objetivos da direção são fundamentais para essa construção e também para não se perder tempo (e, muitas vezes, dinheiro) durante a gravação. É o que eu busco, mas, obviamente, depende do método de trabalho. Tenho tido contato com metodologias de trabalho diversas e muito potentes, e tenho aprendido muito com isso. 

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Como era a sua troca com o pessoal da arte? Eu adoro trabalhar com a arte.

Fizemos muitos testes de maquiagem, de figurino, de tudo, desde o início, porque por mais que fosse um filme limitado em termos de orçamento, uma coisa que não se pode dizer é que não estudamos e não trabalhamos juntos. Por exemplo, há muita troca de cabelo, todos os cabelos eu já tinha visto quando cheguei lá, já sabia como seriam todas as roupas, todos os tecidos. Como era em preto e branco, a cor das roupas também ia estabelecer a escala de cinza que queríamos ter no PB, então eu pedi para eles cores específicas para me manter nessa escala. Os detalhes que seriam brancos na roupa precisavam ter uma tonalidade mais próxima de um cinza/off white, para não ter um branco muito claro, e a maquiagem também traria essa tonalidade nas pinturas. Enfim, foi um trabalho que realizamos muito juntos. As maquiadoras foram fantásticas e muito rápidas. Uma marca muito importante do filme é a maquiagem. O production designer foi o próprio C.J., não tivemos uma figura de direção de arte, ele imaginou e passou para os contrarregras. Eu procurei seguir as orientações e acompanhei de perto a construção de algumas locações. Fiz o que foi possível para valorizar a arte do filme com escolhas de posicionamento de câmera para ter as melhores impressões do espaço. Foi um trabalho árduo.

Os desenhos são muito expressivos, as imagens são muito fortes.

A ideia era fazer um filme expressionista. Eu também trabalho muito com silhuetas. A fotografia tem muitas camadas. Ele é muito expressionista, às vezes tem elementos naturais que quase nos engolem. Tentei pegar algumas referências e também trabalhar códigos afrodiaspóricos. Eu acho que a direção de fotografia é ampla, porque quem está fotografando é uma pessoa específica, com uma experiência de mundo específica, então ela bota um pouco dela nessa construção de imagem. Eu acho importante pensar nesse sentido quando se fala de um certo tipo de cinema. E foi nele que eu escolhi trabalhar. Então, eu tento sempre fazer um estudo sobre a perspectiva de olhar e sobre trazer também símbolos para a narrativa. “Mami Wata” é um filme muito contemplativo e era o que queríamos. Queríamos que a audiência pudesse contemplar essa história, esses corpos, com um olhar valorizante. 

Você traz um peso, uma história, uma vivência… E bela! Você pode contar, você pode se expressar, pode se colocar no mundo com o belo.

Acho que conseguimos construir uma mensagem sobre estética com esse filme. Para mim, faz parte do início de uma trajetória que eu tenho com o C.J. e uma continuação de pesquisas individuais que eu e ele tivemos há anos. Agora é aguardar os desdobramentos e entender se conseguimos influenciar outras narrativas. Porque nosso objetivo é colaborar, de alguma forma, em algum movimento e outras pessoas poderem trazer discussões interessantes. Eu fiquei muito feliz com o nível de discussão que alcançamos até agora em diferentes países, conseguimos conversar de maneira mais ampla e ir mais intrinsecamente sobre algumas escolhas e futuras possibilidades. Eu achei muito interessante. E, de fato, para mim é muito motivador.

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Eu sinto que as artes, como arte mesmo, como essência, ela conta o tempo que a gente vive no agora e já dá indícios de onde a gente pode ir, o caminho que a gente pode seguir. O Sundance, um festival de cinema independente, tem esse olhar artístico que é já um tanto futurista, que nos leva a pensar para onde a gente vai olhar daqui a pouco. Então é um festival que já te traz essa abertura. Você caiu ou foi levada a um lugar que está atento e preocupado com esse olhar, do que esperar, do que vem pela frente. Vamos questionar, vamos conversar sobre todo o significado, o que preenche, quais são os conteúdos interessantes que podem trazer uma forma nova…

Com certeza, Sundance é um festival muito especial nesse sentido, é um importante espaço de visibilidade de obras e profissionais do cinema independente. Muitos DPs de destaque hoje passaram por Sundance. Bradford Young, uma referência para mim, é um exemplo. Eu sei que uma obra demora muito mais tempo do que gostaríamos para trazer mudanças ou se tornar uma real referência. Eu gostaria muito, óbvio, é o que todo artista quer, estar viva para ver as boas discussões sobre o “Mami Wata” e tantos outros projetos. Mas eu não sei, de fato, se essas mudanças são uma possibilidade real e se as discussões que temos vão conseguir tomar um caminho interessante. A pluralidade de olhares vêm quando existe, de fato, visões diferentes. Porém, existe muita disputa. Eu falo de Brasil, estamos muito nesse lugar de sobrevivência, nós fazemos parte de um período de transição da nossa sociedade e de fato não sabemos onde isso vai dar. Estou torcendo e trabalhando para poder colaborar para as boas discussões. E é por isso que eu estou aqui, aberta para a conversa. Mas, de fato, se isso é real e as pessoas estão realmente preocupadas, o que isso de fato vai trazer, eu não sei. Ainda não sabemos de modo concreto. São as próximas gerações que terão essas respostas, elas serão a confirmação das nossas mudanças. E eu espero ser um bom exemplo para esse futuro. Mas, independente de qualquer coisa, Sundance será sempre uma experiência importante para mim.

Isso também é o meu caminho: pensar o que hoje posso plantar que vai me preencher, na minha essência, e que eu acredite que possa contribuir no futuro, mesmo que eu não veja…

Claro! Mas também eu fico questionando coisas muito básicas ainda. Temos a escassez de mulheres no setor, tão poucas mulheres negras, há questões que são básicas e não vamos ver a mudança agora. Veremos daqui a pouquinho, eu espero. É como se fosse uma dorzinha que não vai passar porque é do nosso tempo. Mas acho que o que eu faço na minha vida é apostar no futuro. Eu tenho muita fé no futuro, eu estou aqui porque eu acho que posso fazer algo de fato, alguma diferença, e posso contribuir para alguma coisa. Eu sou muito crítica quanto ao meu trabalho e com os tempos que eu estou vivendo, porque senão isso não reflete em mudança. As críticas têm que ser construtivas para que isso reflita em mudanças boas pra todo mundo. Enfim, eu tenho muita fé que as coisas vão melhorar, estão melhorando, enfim…

Me diga, quando “Mami Wata” vai entrar em cartaz?

Passamos por muitos festivais importantes entre África, Estados Unidos e Europa e ainda temos uma lista grande pela frente. Vamos estrear em breve na Oceania. O filme está rodando o mundo. Estrearemos nas salas de cinema nos Estados Unidos e do Reino Unido no segundo semestre deste ano. Estou muito feliz com isso. 

Lílis, e você fotografou o “Nosso Lar 2”, não é? 

Sim, foi uma delícia de fazer também, eu gostei muito.

E quais são os projetos que você está pra lançar agora? Como é que estão?

Alguns projetos vão estrear no cinema ou streaming como “Nosso Lar 2”, o “Ó Paí, Ó 2” e a série da Amazon, “Amar é Para os Fortes”, dentre outros. Tenho alguns projetos interessantes pela frente e me sinto muito motivada a continuar minha trajetória. Acho que agora é o momento de aproveitar e talvez tentar reescrever os caminhos dentro do que, de fato, sempre imaginei que eu queria fazer. 

Muito obrigada pela conversa, Lílis! 

Obrigada, Silvia. Obrigada, ABC. E boa sorte para nós! 

Transcrição: Julia Trespalier
Edição: Danielle de Noronha
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